quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

 

CINECLUBES: Tela privilegiada do filme

 

É inconcebível a existência do cineclubismo como atividade civilizatória, desassociada da difusão da cultura cinematográfica e do audiovisual, da militância social, sem o filme como instrumento do fazer cineclube, da prática do debate após sua exibição. É na tela dos cineclubes que o filme ganha perenidade. Os cineclubes são organismos vivos da sociedade, que compreendem o público como sujeito ativo e o filme como forma de expressão identitária do povo, fonte de formação, informação e entretenimento. Cineclube é um lugar de criação, de ver, ouvir, sentir e debater a sociedade através do filme.

O cineclubismo do século XXI, permanece com as características essenciais, desde o seu surgimento na primeira década do século XX. No entanto, com o surgimento do cinema digital, uma nova atribuição foi incorporada aos seus afazeres, a criação e produção audiovisual.

Os cineclubes surgiram na França, antes mesmo do cinema se afirmar como linguagem, capaz de contar uma história. Os esforços dos pesquisadores e intelectuais para determinarem um marco referencial, tem exigido esforços bastante meticulosos dos interessados no tema.

Em 1913, uma organização filantrópica de tendência anarquista e de origem espanhola, radicada na França, realizou o filme “A Comuna de Paris”. Eles anunciaram, exibiram, debatem o filme com a presença dos realizadores e de participantes da comuna, que nominaram a atividade de “Cineclube do Povo”. Seus propósitos eram contribuir com a formação da classe operária. Recentemente a Federação Portuguesa, adotou o dia 14 de abril, como dia do cineclubista de Portugal, em homenagem a criação do primeiro cineclube em Paris, em 1907, por Edmond Benoit-Lévy, (https://bit.ly/3eIySBR, pg. 7), abrindo o primeiro capítulo da história do movimento cineclubista, atividade fundamental na cultura do século XX.

A partir de então, os cineclubes ganharam espaço, primeiro na Europa e depois na América Latina. No Brasil em 1917, no Rio de Janeiro, um grupo de amantes do cinema, assistiram filmes nos Cines Íris e Pátria e depois se dirigiam a um lugar chamado “Paredão”, para discutir o filme. No entanto a criação do “Chaplin Club”, também no Rio de Janeiro, em 1928, ganhou vulto, em função do registro de suas experiências. 

Em 1940 é fundado o “Clube de Cinema de São Paulo”. Sua primeira atividade foi proibida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, do Estado Novo. O clube voltou a funcionar em 1946, e de suas atividades surgiu a atual Fundação Cinemateca Brasileira.

A partir da década de 1950 em diante, as atividades dos cineclubes se tornaram mais frequentes no país, foram criados vários cineclubes em diversos estados, influenciados pela ação da igreja católica e das universidades. Ainda na década de 50, surge a primeira entidade de representação dos cineclubes, marco do que hoje identificamos como Movimento Cineclubista Brasileiro. Em 1959 é realizada a primeira “Jornada Nacional de Cineclubes”, congresso que serviu e ainda serve para os cineclubes avaliarem as atividades do ano anterior, e estabelecer novas diretrizes para o período seguinte.

Na década de 1960, os cineclubes vão se afastando das atividades voltadas para a discussão estética do filme, se proliferam pelos movimentos sociais, passam a discutir a sociedade por meio dos filmes. Quase toda a primeira geração do “Cinema Novo”, eram oriundos dos cineclubes. Paulo César Sarraceni dizia que o cinema novo nasceu dentro do cineclube da FAFI - Faculdade de Filosofia do Rio de Janeiro. Nesta mesma década, os cineclubes são definidos pela Lei 5.536, de 27 de novembro de 1968, em 13 de dezembro do mesmo ano, com a edição do AI-5, Ato Institucional nº 5, as atividades dos cineclubes foram proibidas.

Reorganizados em 1974, os cineclubes retomaram suas atividades sob a Ditadura Civil Militar em sua fase muito repressiva. Afeitos a militância política, posicionaram contra a censura, se organizaram nas periferias, no campo, nas cidades, nos sindicatos, nas comunidades eclesiais, nas associações recreativas e esportivas das universidades, criam a Distribuidora Nacional de Filmes para cineclubes - Dinafilme. Filmes, projetores, telas, cartazes, eram apreendidos, cineclubistas foram fichados no DOPs, como “Agitadores Comunistas”. Alguns optaram pela guerrilha, sequestraram avião, foram exilados.

Por duas vezes a Dinafilme foi invadida pela Polícia Federal e apreenderam mais de 90% dos filmes. Mesmo assim, os cineclubes criaram um circuito de exibição, lançaram filmes e chegaram a pagar a produção de alguns deles. Participaram da campanha da Carestia, da Anistia, Diretas-Já.

No final da década de 80, com o país retornando ao Regime Democrático, suas entidades entraram num longo período de hibernação, se rearticularam em 2003. Em sua primeira fase, no governo Lula, pela primeira vez o Estado acena para os cineclubes, políticas públicas voltadas para o setor cultural, possibilitaram ao setor, acesso aos bens estatais e os cineclubes, como pólvora, voltaram a cena cultural do país.

Ironicamente, a partir do segundo governo Dilma Rousseff, apesar de sua formação cineclubista, a liderança foi incapaz de aprumar o leme e o Movimento perdeu unicidade.

No final de 2019, durante a realização da 30ª Jornada Nacional de Cineclubes, em Viçosa/MG, a Diretoria atual assumiu o comando do leme e mal tomou posse, o mundo foi sacudido por uma pandemia, modificando o comportamento social planetário. No entanto à atividade cineclubista permanece viva na memória do Cinema Brasileiro, com substantivos, adjetivos e verbos que os qualificam e legitimam sua contribuição na cultura do país.

Vivemos tempos difíceis, mas poucas vezes o terreno foi tão propício como agora. O debate é condição sine-qua-non na essência de um cineclube. Nunca se produziu tanto cinema como atualmente e nunca o acesso ao filme foi tão favorável como agora. Um pendrive no bolso, uma distribuidora na mão.

Os cineclubes estão na base piramidal da sociedade brasileira, conversam direto com o público, aguçam no espectador, sua reação crítica.

Desde que a pandemia, Covid19, se instalou e vem ganhando corpo, tem matando corpos pelo país afora, setores da cultura interromperam suas atividades, parcial ou totalmente. Para os cineclubes não foi diferente.

É um movimento que se reinventar com capacidade de reagir, recriar alternativas de exibições online, vem se apropriando de outras formas de difusão e debates. Novas telas se abrem em tempos virtuais e nos transportamos para um novo modo de cineclubar, adaptando, respeitando o momento.

O cinema é a forma de entretenimento que mais faz falta durante a pandemia, segundo pesquisa divulgada pelo movimento #JuntosPeloCinema, em 15 julho de 2020. Para 75% dos entrevistados, o cinema será prioridade no retorno das atividades pós-quarentena.

As atividades virtuais dos cineclubes, similar ao período da ditadura no Brasil, vem sofrendo ataques de hackers negacionista, fato que não nos afugenta.

O cineclubismo vem superando dificuldades ao longo do tempo e acreditamos: enquanto houver filmes sendo realizados, haverá sempre um cineclube!

 

Diogo Gomes dos Santos

Cineclubista/Historiador/Cineasta

Diretor Tesoureiro do Conselho Nac. Cineclubes Brasileiros

 

Colaboraram:

Tetê Avelar

Professora e Presidenta do

Conselho Nac. Cineclubes Brasileiros

Joseane Alfer

Desing/Diretora de Arte

Doutorando em Estética e História da Arte/USP


domingo, 19 de fevereiro de 2017

A PRIMEIRA SEÇÃO (OFICIAL) CINECLUBISTA ACOMPANHADA DE DEBATE


Aconteceu no dia 14 de novembro de 1921, “a primeira seção oficial de um cineclube, com projeção de filmes acompanhada de debate”, quando foi exibido o filme expressionista alemão dirigido por Robert Wise em 1919, Das Kabinett des Doktor Caligari (O Gabinete do Dr. Caligari). A seção ocorreu no Cine Colisée¹, em Paris².



Não esquecemos que o termo “Cine-Club”, foi criado por Louis Delluc, quando lançou em 14 de janeiro de 1920, o Journal Du Cine-Club, posteriormente o jornal passou a ser chamado Cine-Club.



A Dinafilme tinha uma cópia deste filme em 16 mm vinda da Cinemateca Brasileira, que o havia disponibilizado para difusão e era um dos filmes mudo mais requisitado. O Instituto Goethe também tinha uma cópia e emprestava gratuitamente para os cineclubes. Hoje o filme está disponível no Youtube em DVD. “Diz-se que naqueles tempos -década de 1980 -, os cineclubes falam alemão!”. Consultado os jornais da época, constata-se que havia uma coluna chamada Cineclubes, preservada até hoje, lá verão que o cinema alemão era tão presente na programação dos cineclubes, como os filmes brasileiros. 



Filme de 1919, clássico do expressionismo, atualmente alguns apressados cinéfilos dizem que o filme pertencer aos gênero terror e suspense. O filme é expressionista!!!

OBS: Evidente que a história é uma narrativa, os esforços intelectuais para justificar este ou aquele ponto de vista a torna a cada dia mais atraente e mais do que nunca, viva.

Diogo Gomes dos Santos
Cineclubista

---------------------------

¹ - LISBOA, Fátima Sebastiana Gomes, História e Cinema, editora Alameda, SP, 2007, organização: Maria Helena Capelato, Eduardo Morettin, Marcos Napolitano Elias Thomé Saliba, pág. 352.
² - Em 2013, com o endosso da Federação Internacional de Cineclubes, Felipe Macedo publica texto onde registra a primeira sessão cineclubista, ter acontecido em Paris, com a exibição do filme "A Comun a de Paris", em sessão promovida pelo Cineclube do Povo, acompanhada de debate após a sessão.

sexta-feira, 3 de maio de 2013




Estripulias Cineclubistas



Este registro é para ficar circunscrito ao arco cinematográfico, não só das intrigas e futricas intestinais que viviam e creio ainda vivem boa parte das relações cineclubistas, mas que ele possa viver também no brilho da tela.

Naquele tempo em que rebeldia era reclamo de inteligência, vivência, sensualidade e o sutiã fora dispensado, cumprimentos eram beijos trocados boca a boca e “Blenorragia, Uretrite Gonocócica”, a velha e conhecida gonorreía se curava com uma injeção de penicilina. A vida fluía com lenço e com documento... Tempo havia pela frente.


Entre a patota cineclubista se compartilhavam umas e uns, outros e umas, salvo as reservas consentidas entre os pares. Alguns grupos adotavam suas próprias formas de manter sua coesão.

O “estica-estica” fora uma delas. A Rosana era um “mionzinho” que todos queriam experimentar. Embora eles não soubessem, era ela quem dava as cartas. Sua vez e hora podiam chega a qualquer, só que dependia dela. O João se gabava e se achava o mais experiente. Quando foi por ela atacado, sem aviso de que sua hora chegara, num curto espaço entre o oitavo andar e o térreo, sua experiência nem serviu para paralisar o elevador, foi puro acidente. O Síndico, Seu Expedito, sem a permissão dos afoitos, sabia como fazer o elevador cumprir sua rota traçada, dos dez andares, subindo ou descendo; afinal, em todos os andares havia uma empresa de filmes. Sãos e salvos, meio despenteados, os dois saíram mais que depressa, ficando no olfato do sindico um cheiro de tapete molhado.



Depois da Assembléia da Federação Paulista de Cineclubes, a união do cineclube "Saga Operária" fora abalada. Rosana, numa questão de relevância duvidosa, votou contra o grupo. Os motivos, não aqueles da Assembléia, ela se negava a revelar, então não tinha outro jeito se não apelar para o “estica-estica”, também conhecido como “puxa-puxa”, que consistia em pegar nos braços e pernas, esticar ou puxar, como queira, até que a vítima apresentasse um argumento plausível. Tê-la no grupo como dissidente não era bom.

Na primeira sessão do “estica-estica”, o esticado ficava em pé e era puxado pelos braços, um para o norte e o outro para o sul. Na segunda sessão, o esticado ficava deitado, enquanto braços e pernas – eram puxados, ao mesmo tempo no sentido dos pontos cardeais.

Havia certo espanto em todos, ela resistia às duas sessões, mais do que Carlos, Fernando, Fernandes, João, Irene, Ana, Jacira... Todos que já haviam passado por aquela situação entregavam os pontos rapidinhos, por isso talvez, a união inabalável do Cineclube “Saga Operária”. No íntimo de cada um, todos sabiam que força tinha, mas Ninguém achou que Alguém não usara força suficiente. Mas quem aliviou?  Pensou Todo Mundo que podia ter sido Qualquer Um que estava fazendo corpo mole, mas Alguém pressentiu que além dele poderia ser Qualquer Um, que também conhecia o cheiro, o chamego e o sabor dela.



Alguém de Souza fez a proposta de pendurá-la pelas pernas, de cabeça para baixo da janela do oitavo andar. A confissão era certa. Todo Mundo achou boa ideia, mas reclamou prudência e Qualquer Um se prontificou na ajuda, segurando uma das pernas, enquanto Ninguém a interrogava, mas para isso, teriam que esperar o encerramento do expediente.




Deste ponto de vista do fato narrado, sem a presença de todo mundo, a versão em andamento  tem uma vírgula dissonante, de que tal despautério pudesse ter chegado aquele ponto. A situação, segundo esse, chegou até o pé da janela que estava aberta. Certo é que os gritos despertaram a vizinhança, mas ficou por isso mesmo, afinal, poderia ser cena de um filme da “Boca do Lixo” que estava sendo rodado num dos andares do prédio de nº 134 da Rua do Triumpho, ou poderia até ser o tal teste do sofá, vai saber...






Aquela discussão da Assembléia martelava a cabeça de Irene, que confidenciou para Ana e Jacira. Ambas, com as mesmas interrogações, saíram, deixando Rosana em companhia dos homens. A sessão “estica-estica” era uma dessas brincadeirinhas de mau gosto é verdade, mas o fim justificava os meios, diziam seus adeptos. Quer saber, ponderou Irene; vamos pro bar do seu Ferreira, enquanto tomamos uma gelada, daqui a pouco eles desistem.

- Jacira, tudo bem, mas não esqueça que apesar de tudo, homem é homem.
- Irene, não se preocupe, a Rosana sabe se defender muito bem, viu?
- Jacira, sei, mas eles estão em quatro.
- Ana, você tem razão Jacira, homem é homem, mulher é mulher e este movimento cineclubista é machista pra caralho... Há lá isto é.
- Irene, você acha?
-Ana, você tem informação de alguma mulher presidente da Federação Paulista ou do Conselho Nacional de Cineclubes?
- Jacira, a Aninha Cavalieri, Lurdinha Marcondes e a Marisa Anoni no Rio de Janeiro, ah... Como é mesmo o nome dela? Aquela moça lá de Vitória que foi presidente da Federação Capixaba... meu Deus, como é mesmo o nome dela?
- Ana, estou falando de São Paulo, mas fora o Rio e o Espírito Santo, onde mais? Que eu saiba é só. Alguma mesa, algum debate específico sobre a questão da mulher cineclubista em algum encontro ou jornada de cineclube, onde, quando?
- Irene, ok, pôr falta de informação, você por enquanto tem razão.
- Ana, pois é né. Existe algum Acervo, Centro de Memória onde se possa pesquisar? As Cinematecas, bibliotecas, os arquivos desta área são deficitários. Os arquivos que existem estão misturados, tudo no assunto cinema.
- Jacira, pois não é que é mesmo, quem não tem memória, não tem o que lembrar, não tem o que contar.
- Ana, não é o nosso caso, apesar da nossa importância e desorganização com a questão.

Lá pela quinta ou sexta gelada, enquanto a terceira ou quarta porção de linguiça frita com cebola banhada na gordura queimada era sucumbida, a conversa da Assembléia voltou; e na mesa do bar o assunto virou um verdadeiro “debate cineclubista”. Afinal, argumentava Ana:


John Ford

- O John Ford matou mais índios do que o General Costner...
- Esse General Coster, não é o Kevin Costner, não é Jacira? Indagava Irene.
- Ih mina, tu já tá pra lá de “Marraquexe”, groguinha, groguinha e só com duas cervejinhas. Depois não venha me perguntar se foi Alguém, Qualquer Um, Todo Mundo ou Ninguém, quem faz a manutenção na sua perseguida.
- Pôxa Irene, pra que tanta ironia?Quando eu tô chapada, eu não lembro mesmo, ué..., soluçando Jacira com os olhos lagrimejando olha para o teto.
- Questão de ordem, questão de ordem!
- Qual é meu, questão de ordem!? Aqui? Fala Ana, Qual é a questão de ordem?
- Eu quero saber do filme, da conversa do cineclube que a Rosana votou...
- Irena, ah não, meu, isso não é questão de ordem, isto é questão de esclarecimento.
- Ana, tá bom, então esclarece...
- Irene, a gente estava falando do General Costner', o Bufallo Bill, personagem dos filmes daquele reacionário do Jonh Ford.
- Jacira, mas então, é isso mermo... É aquele ator irlandês, o tal “Jon Ueini”?


John Weyne

                                             Joe Lynch e Cary Grant

Entre um arroto e outro, naquele burburinho do boteco do Seu Ferreira, o debate avança e as cinzas dos cigarros já faziam parte do tempero da nova porção de tira gosto que acabara de chegar à mesa.

 - Ana, é isso mina, é aquele irlandês mesmo, o tal John Weyne, aquele brutamontes, arrogante de merda, se meteu a besta com Cary Grant e levou umas porradas, no Set de filmagem.
- Irene, também pudera né? Cary Grant luta boxe, poxa, puta covardia meu!
- Jacira, e é eu que tô pra lá de “Marraquexe”, né! Aquele reaça foi presidente do Comitê de Atividades "Anti-Americanas", fudeu meio mundo. Dalton Trumbo que o diga!
- Ana, é por isso que eu não entendo porque a Rosana votou contra o Cineclube do CSO.
- Jacira, tem que explicar meu, tem que explicar
- Ana, explicar o quê? Ana, muito irônica, está prestes a ter um troço.
- Jacira, explica que CSO, é a sigla do Cineclube da Saga Operária - C, cineclube, S, saga, O, operária, foram eles que recusam a passar filmes em 16 mm do John Ford.
- Irene, Tá bom, eu sei, nós discordamos deles. A Rosana foi quem virou a lata. E depois Dona Jacira não confunda cú com calça, alho com bugalho e bitola com filme.
- Jacira, mas 8 é diferente de Super 8 e 35 mm é diferente de 16 e 70 mm.
Ana e Irene entram em parafuso, bebem e fumam ao mesmo tempo, Jacira achando que as amigas estão levando a sério aquele confusão provocada por ela, Jacira fala cariosamente com elas: Amigas, deixa os caras, meu, eles exibem os  filmes que eles quiserem. Se eles não querem exibir filmes americanos, que não exibam, se não quer exibir filme do John Ford, que se foda o John Weyne.
- Ana, mas que é foda, lá isso é!
- Jacira, pois é, mas a questão é que o côro está aumentando.
- Ana, agora é tu, explica logo antes que a coisa se complique mais ainda.
- Jacira, a Federação Mineira de Cineclubes também não quer passar filmes do John Ford.
- Ana, Não?
- Irene, Não?!
- Jacira, e não só filme do John Ford, mas americano e até brasileiro.
- Ana, ah, não; ah não! Brasileiro não, isso não! Que filme brasileiro os caras não querem exibir meu?
- Jacira, A Morte Comanda o Cangaço, do Carlos Coimbra, é um deles. Eles dizem que o filme é tão Hollywoodiano como os americanos.
- Irene, porra meu... Coitada da Aurora Duarte!
- Ana, lascou... Agora estou preocupada sabia.
- Irene, como assim? preocupada.
- Ana, o meu, que o cara matou muito índio, vai lá, vai... Quem sabe pode até ser uma crítica.
- Jacira, crítica, bebeu mina é, bebeu? Crítica, aquela matança toda... Crítica é a capacidade de ver o que está oculto... Eles exterminaram quase tudo meu!
- Ana, o cara dirigiu “No Tempo das Diligências”, um filmaço meu.
- Jacira, é um filmaço mesmo né meu, quebrou até o eixo, né!
- Ana, e “Vinhas da Ira”?
- Jacira, o que é que tem...?
- Ana, é que às vezes tenho a sensação que a relação dos cineclubistas com o filme é só política ideológica. Fico com a sensação de que o filme é uma peça ilustrativa para o discurso político. Cineclubista que não conhece seu objeto de trabalho... fico cá a me perguntar, sabe pá, que tipo de trabalho ele pode fazer? E o dia que ele descobrir o nome do Paulo Emilio Salles Gomes, como um dos roteirista do filme "A Morte Comanda o Cangaço"!

No Tempo das Diligências

Índios de "o Tempo das Diligências"

Cangaceiros de "A Morte Comanda o Cangaço"

                                           Vinhas da Ira



Com a chegada dos outros membros do cineclube à mesa do bar, o prognóstico de Irene se cumprira, o debate prosseguia noite a dentro, enquanto a ausência de Rosana se fazia sentir naquela atmosfera já bastante carregada.

O fato do filme americano ter sido barrado pelo cineclube do CSO e pela Federação Mineira, é fato acontecido, o registro do C.A. DINA (Conselho de Administração da Dinafilme), não deixa dúvida. Que a sessão "estica-estica" que foi narrada e re-contada com um ponto a mais ou uma vírgula a menos, isso já é sabido. E que outras vozes testemunharam, fica a certeza da dúvida e as reticências para os incrédulos, isso é normal. A oralidade é fonte e muitos ainda conjugam o verbo cineclubar. Assim os sentidos das palavras seguiram a ordem da narrativa.



quinta-feira, 11 de abril de 2013




Afinando o Coro Cineclubista

A ambientação tinha todas as características de um esconderijo clandestino, local marcado para reunião da “Avançar¹”, tendência política de inspiração “partidão brasileiro”, que atuava no Movimento Cineclubista desde 1979. Das reuniões participava inclusive quem não era do partido, desde que convidado pela liderança. Mas, sempre tem um, porém: Cineclubista mineiro, mesmo sendo comunista não participava, tal era o grau de divergências existente. A reunião aconteceu no segundo dia da Jornada, depois da abertura, que acorreu na noite anterior, uma praxe da época. Uma noite no meio, depois da abertura e começo dos trabalhos da Jornada no dia seguinte, mas.

Refeitório da 15ª Jornada Nacional de Cineclubes. Barbudo de pé, Ricardo, presidente da Federação Mineira de Cineclubes, ao fundo, cabeça branco de pé, Maurice Legead e sentado Jean-Claude Bernadet.

Cartaz da 14ª Jornada Nacional de Cineclubes, Brasília, 1980.

O Campus da Universidade Federal de Campo Grande, Mato Grosso, antes da divisão do Estado, fora tomado pelos cineclubistas no sentido mais democrático possível, que se reuniram na 15ª Jornada Nacional de 1981. Apesar de ser uma Jornada tranquila, diga-se, sem eleições, com a “Avançar”, tornava-se prudente, organizar o tom do coro majoritário.

De repente, uma informação penetrou no meio da reunião, que interrompida, levou a direção da Jornada na pessoa do seu presidente², a liderança da “Avançar”, a apaziguar os ânimos. Cineclubistas ligados ao Movimento Negro estavam chamando correligionários da causa, para um bate papo informal, sobre questões que achavam pertinentes ser discutida na Jornada em função da importância e da relação que, aqueles cineclubes tinham com a questão nos seus afazeres diários.

Com discurso moralizante, bocejando, babando a liderança vociferava: Uma reunião desta natureza não pode acontecer, abre um precedente perigoso, para a partidarização do Movimento Cineclubista por partidos políticos, isso devemos combater.


No decorrer da jornada, companheiros velhos de guerra conversam, aquele era um momento para confraternizações, discussões, conchavos,... Homens e mulheres trocavam notícias, desventuras, amores, namoros, imagens e sonhos da labuta cineclubista. Discutiam sobre aquela sequência do filme³ em que um ancião japonês sobe, na contra luz, uma ladeira íngreme com enorme saco nas costas, em contra ponto, descendo vem o migrante nordestino e cruza o imigrante que sobe; a luz, o ritmo à atmosfera, alguém quer saber por que, na mesma sequência, o japonês sobe e o nordestino desce quando se achega na roda, o lendário cineclubista baiano4, “estava branco de sua negritude”. Pasmos, ficamos todos e à inevitável pergunta saiu. A inquieta resposta veio firme, enigmática e num tom quase ameaçador:
- Ele vai ver, na próxima Jornada eu vou trazer um ônibus!
- O que aconteceu?
- Que ônibus?
- Porque a reunião não aconteceu?
- Não estou entendendo nada!
- Que coisa mais cabulosa, o que é que tem uma reunião de cineclubistas negros, brancos, pardos, amarelos, mestiços?

Pairava no ar a interrogação. Embasbacados o congresso continuou, o clima de congraçamento que sempre marcara aqueles encontros estava um pouco ofuscado. Nas andanças das horas o tempo segue. Aquela era uma época em que discordar não era sinônimo, como hoje, de desavença pessoal, mas pontos de vista diferente, opção respeitada e acalentada por todos e as conversam fervilhavam por todos os cantos, recantos e fluir nos poros.

 - Só ele acha, que só ele pode se reunir, os outros não.
- Não entendi.
- Rapaz eu estava numa reunião com o cara, quando chegou à informação que o movimento
negro queria se reunir.
- Como assim, Movimento Negro?
- Às escondidas?
- Não era o Movimento, mas cineclubistas negros. E não era às escondidas, era reunião aberta.
- Agora melhorou. Quer dizer...
- E esta história de ônibus na próxima Jornada?
- É o seguinte. O cara depois de chamar a reunião que eu e muito mais gente estava participando com ele, às escondidas, fui querer saber o porquê de uns podem se reunir e outros não? Ai ele me respondeu dizendo que eu não entendo as coisas, que só eu participo dos encontros e fico falando em nome dos cineclubes baianos.
- Mas com isso eu concordo, porque os cineclubes baianos não participam dos encontros?
- Aliás, não só os baianos!

- Os cineclubes baianos funcionam nas periferias, nos alagados, eles não têm condições de ficar uma semana fora. Eles não têm dinheiro nem para alugar os filmes. Eles passam filmes quando conseguem de graça, quando eu repasso do Clube de Cinema5, da Universidade ou quando peço e os cineastas baianos liberam os filmes de para eles. Quer saber, os cineastas baianos são os que mais emprestam filmes de graça pros cineclubes.

- Também pudera né, a maioria foram cineclubistas.
- Rapaz, a maioria nem trabalha...
- Quem não trabalha, os cineasta ou os cineclubistas?
- Tô falando dos cineclubistas. Eles não trabalham não é porque são vagabundos, é que estão
desempregados e quando trabalhando, ganham muito pouco, nem dar pra sustentar a família, aí todos têm que trabalhar, inclusive os irmãos menores. Então, eles nem tem como pagar a condução para ir pegar os filmes, eu é que levo. Como pessoas nessas condições podem participar de uma Jornada e ficar uma semana?

Primeira delegação baiana na 15 Jornada de Piracicaba, 1982. Promessa feita em Campo Grande, comprida em Piracicaba.

Dados como estes, apesar de não ser novidade, ditos assim, numa situação como aquela, toma outro rumo, ganha outra dimensão, a realidade bate na cara, no estômago, a questão de classe, de gênero, de raça, já estava na mesa sem ao menos darem conta disso. Aliás, ela fora notada, na jornada seguinte (Piracicaba, com o ônibus lotado da delegação baiana, entre outras). Jean-Claude Bernadet numa conversa informal deu a deixa: os cineclubes mudaram, tem a cara do povo, vê se pela maneira de vestir, de andar, pelo corte do cabelo6, pelos dentes, pela música que cantam, como dançam, se divertem e pelo modo do falar. Já escutaram o som do português que eles emitem; como soa diferente do que ouvimos nos filmes, na televisão? Quem é mesmo que organiza os cineclubes? E o cineclubista é o que, público?

Retomando a linha do tempo do descambar do congresso e para que essa conversa fuja do inverso do novelo, quanto mais desenrola, maior fica. No Jornal Mural7 da Jornada, essas e outras questões, estavam lá, registradas em forma de “Troféus”, a luta classe, tão propagada já estava em ação. Visto hoje desta perspectiva, a luta travada com o cineasta, exigindo concordância dele para suprir uma sequência do seu filme8, quando exibido em cineclubes periféricos, mas do que patéticos, estavam perdendo o bonde da história.
Lobos mudam os pêlos, não a pele.




Referências e Citações


¹ - “Avançar” – Tendência política que atuou no Movimento Cineclubista Brasileiro, criada por cineclubistas, militantes do Partido Comunista Brasileiro, depois da 12ª Jornada Nacional de Cineclubes, Caxias do Sul, 1979, quando, por quatro ou cinco votos, a chapa da Liberdade e Luta (LIBELU), tendência política, de inspiração Trotskista, famosa no Movimento Estudantil e que atuava no cineclubismo, ameaçou o bloco hegemônico liderado pela “Avançar”, perdendo a disputa pela direção do Conselho Nacional de Cineclubes, até então e informalmente, dominando pelo também famoso “Partidão”.  Irônica e arrogantemente, o nome “Avançar” fora retirado de uma frase de Stalin (Josef Vissarionovitch Stalin), quando este ordena o avanço do Exército Vermelho sobre os invasores nazistas.

² - Luiz Felipe Bacelar de Macedo foi eleito presidente do Conselho Nacional de Cineclubes em 1978, na 12ª Jornada Nacional de Caxias do Sul, RS.

³ - “O Baiano Fantasma”1984, filme dirigido por Denoy de Oliveira.

4 - Luiz Orlando da Silva”, um dos maiores cineclubista do país, amigo de todos, nunca pleiteou cargo, além do Movimento da Bahia, morto em agosto de 2006.

5“Clube de Cinema da Bahia”, um dos mais importantes Clubes de Cinema do país, fundado por Walter da Silveira, responsável pela condição de cineasta de Glauber Rocha. Este participou da 1ª Jornada Nacional de Cineclubes, representando o Clube da Bahia, em São Paulo, 1959. Depois disso o “Clube” foi dirigido por Guido Araújo e sucedido por Luiz Orlando da Silva. Nesta condição ele participou do cineclubismo brasileiro.

6 “Jornal Mural”, foi um expediente criado espontaneamente pelos cineclubes, sem registro em que Jornada, onde se outorgava “Troféus” a cineclubistas e situações ocorridas durante a realização das jornadas. Os “Troféus” adquiriram simbologias significativas da cultura cineclubista, depois de sua primeira edição como Encarte dos “Anais da Jornada” de Ouro Preto, 1985, na gestão deste autor, que apesar das poucas edições, são dignas de tese.

7Na plenária final da Jornada também, estas e outras questões vieram à tona. As Moções de Apoio que as documentou para história. Elas podem ser vistas nos “Anais da Jornada”, publicadas em brochuras pelo CNC. Aliás, estas questões foram pré-anunciadas, mesmo que indiretamente, no cartaz da 14ª Jornada de Brasília, 1980, onde se vê a fotografia negritada de um negro, cabelo Black-Power, tendo ao fundo, películas cinematográficas em vermelho e branco, sobre o fundo preto e preto, sobre o fundo branco, sugerindo alusão à maneira guerrilheira de carregar munições, com o jeito cineclubista de qualificar de “revolucionário” o movimento.

8 João Batista de Andrade, diretor do filme “O Homem que Virou Suco” 1981, um clássico dos filmes exibidos pelos cineclubes da época. Durante a Jornada, quase todos os Administradores Regionais da Dinafilme, a Diretoria Executiva do CNC e vários cineclubes, se reuniram com João Batista, solicitando a exclusão de uma sequência do filme, em função de questões morais. João não concordou, mas deixou a questão em aberto para critério do “movimento” e/ou de cada cineclube. Esta questão foi abordada no texto “Proezas do Homem Que Virou Suco”, entre os cineclubes, publicada no livro homônimo do filme, organizado por Ariane Abdalha e Newton Cannito, pela Coleção Aplauso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, pag. 178 a 188, desse autor.
  

 Jornada de Campo Grande, o de calção branco era do Cineclube Lanterninha Aurélio, esqueci o nome dele, alguém lembra? Quando eu (bolsa tiracolo) do Cineclube Capitães de Areia; Serge Roizman (barba) do Cineclube TAIB, Eufraudísio (camisa branca) do Cineclube Icaraí e o Heleno do Cineclube da Penitenciária Feminina de São Paulo capital, atravessávamos o gramado, fomos desafiados para uma pelada, apesar do Eufraudíso insistir que era um "baba".




segunda-feira, 18 de março de 2013


A Internacional, uma vez mais!


Foto Joseane Alfer


Mesmo em tempos digitais, tentamos em momentos distintos organizar uma sessão cineclubista em uma casa, que contasse com a presença do nosso amigo tão querido, o africano nascido na iluminada Ilha da Madeira, o “portuga” António Gouveia.

Tempo e dinheiro, dois bens deveras preciosos. O tempo, que tenho sem limite graças ao esforço do trabalho, está à minha disposição, apesar das marcas no corpo e das manchas nas roupas que perdi com o suor, resultado da labuta diária. Quanto ao vil metal, continuo me esforçando para manter comigo o pouco que conseguir. Juntando-os, vejo que não disponho deles o suficiente, para ir a uma sessão de cinema em vossas casas, para ver um filme, mesmo nessa tal tela de plasma, que é no dizer atual “quase um cinema em casa”!

Foto divulgação internet


Na grande tela, sentando no fundo da sala e sendo um dos últimos a receber os primeiros raios luminosos da luz rebatida da tela na platéia, lá estávamos “Nós, que nos Amávamos Tanto” com um saco de pipoca na mão assistindo as tais “Papo de Boteco”, um filme do Diomédio Piskator, realizado em Digital, projetado na grande tela do espaço cinematográfico referência paulistana, que muito tinha do seu ideal cineclubista, mas que para isso - saco de pipoca -, naquela efeméride, tinha uma teoria, o título do filme! Logo ele que no passado, pipoca no cineclube Bixiga não tinha. As mentes evoluem e a ocasião, também... vai uma pipoquinha aí?

Foto divulgação internet

Foto divulgação internet


Depois de algumas conversas jogadas ao ar, no saguão de saída, já que o ritual do debate após a sessão ficara relegado ao tempo, nos saudosos fios da memória de outrora, subimos a tão Augusta rua, com sua tradicional boêmia agitação, no que pese o barulho da modernidade, subimos a passos lentos, flagrando, fragmentos de um ou outro luminoso detalhe, sons de indecifráveis vozes, o ronco “play-moto-boy”, o sobretudo preto da abundante jovem em direção à sua tribo, e da pouca roupa que as vergonhas já não cobriam, porque também já não as tinha, aquele provocante transeunte, seguimos...

A alta marquise proporcionava um sombreado, num pequeno trecho da rua, ecoa um som a passar lentamente pelos ouvidos ainda sob os efeitos da sonoridade audiovisual, um pouco sob a turbulência sonora da rua, mas aquele fiapo melódico principia,  perceptível timbre do ouvido que se ajeita e permite a penetração da inconfundível nota musical, oferecida pela nossa velha sanfona, que espalha maviosos acordes da Internacional Socialista, ali, ao ar livre daquela tão prostituta rua.

Foto divulgação internet


O africano para. O trânsito transeunte da calçada fora subitamente alterado, passos diminuem, rotas repentinas surgem, agora o som é límpido e lá impávido “qui nem Rosa de Lalí”, o esquelético e cabeludo sanfoneiro continua, absorto a tocar aquele sonho distante no tempo. Frente a frente, onde apenas um vê o outro e o som envolve os dois, o “portuga” mão de vaca, tira do sonâmbulo tocador, um gesto sutil de agradecimento, com a certeza do observador, de que a feira da semana fora garantida pela generosidade do gesto!

Foto divulgação internet - manifestação em Lisboa


Ah, meu amigo, quanto vazio sua presença nos falta. A Rua de tão Augusta, tão distante ficou. O cinema tão festejado tanto incomoda, agora provoca. Frequentá-lo já não convém. Do tempo que ainda resta, certa escolhas nos impõe e a caverna que liberta os sonhos, achá-los convém. Ainda que haja vida lá fora, da janela a mirar a luz que brilhar o rumo do teu olhar... Corta!



 Foto Diogo - Gouveia visitando as obras do Cineclube Grajaú, 
sala vitrine do Circuito Popular de Cinema, projeto do CECISP.